sábado, julho 09, 2011

Retrato - de Marcos Marinheiro - de um mundo que ninguém quer


Um homem (já) sem rosto, à janela de um mundo cinzento, a escorrerem-lhe pelos ombros fios verdes e vermelhos que tanto podem ser de esperanças derretidas ou de sangue. Teve expressão – já não tem. Terá sorrido – já nem tem olhos, nem lábios. Perdeu a cara. Está reduzido à importância da gravata, que pelos vistos lhe valeu de pouco – e que aqui, aliás, o sufoca.

Depois ter tido identidade, e aparentemente alguma sorte, é um desrosto, uma desidentidade, os restos de uma vida. Depois de ter nascido, lutado, protestado, cedido, e por fim talvez gritado e enrouquecido, tem a fala reduzida a quatro dígitos: "2011".

[Há ali até uma luazinha eclipsada.]

É isto o que este quadro diz? Pode ser, pode não ser, é uma hipótese entre tantas, mas o mais importante é olhá-lo de frente, sem virar a cara, e tomá-lo como um aviso contra um mundo que ninguém quer – um mundo de cores desbotadas, de gente presa no silêncio, de sorrisos mortos, de esperanças derretidas, um mundo sem expressão, um mundo sem luz e sem direitos. Um mundo anónimo.

Pintou-o, com propósitos próximos destes, Marcos Marinheiro, um dos participantes da Exposição Colectiva de Pintura 50 Anos, 50 Quadros, comemorativa do nascimento da Amnistia Internacional, em 1961, que decorreu entre 14 de Maio e 29 de Junho na Vila Alda, em Sintra, que depois o doou ao Grupo 19, acompanhado de uma reflexão que tomamos a liberdade de reproduzir e que vale a pena ler e meditar.

“Pensei na situação do mundo actual.

Pensei na situação que atravessa o nosso país, nas dificuldades que atravessamos, mas acima de tudo nas limitações que persistem na sociedade portuguesa e na forma de estar perante a vida que constitui o ser português.

Pensei nos direitos das pessoas e como infelizmente pelo mundo fora, em tantos países, muitos dos direitos básicos não estão ainda assegurados.

Mas pensei também e senti, e foi isso que acabei por pintar, no como é possível haver violações dos direitos humanos em territórios ou contextos em que tal parecia já não ser possível.

Pensei nas formas mais sofisticadas e subtis de ausência de respeito pelo outro e numa sociedade em que tantas vezes, pelas mais diversas formas, se inibe ou coarta a liberdade de pensamento e de expressão do outro.

Reflecti como é estranho e perversa a incapacidade de convivermos com outras formas de estar e de pensar. Como a diferença incómoda e como a tentação de silenciar constitui uma tendência primária e primeira do ser humano.

Este é pois um quadro sobre o silenciamento – silenciamento do indivíduo em particular e da sociedade em geral, num ano em que Portugal se vê obrigado a pedir ainda mais dinheiro ao estrangeiro -, mas também sobre a Violência que está presente no não querer ouvir o outro.”


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A obra pode ser vista, a pedido, na sede da Amnistia Internacional Portugal, na Avenida Infante Santo, 42 - 2º, em Lisboa.

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